quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Ensaio: Sobre a Palavra (ou Sobre Uma Palavra)

ENSAIO: SOBRE A PALAVRA (OU SOBRE UMA PALAVRA)
[Mateus Almeida Cunha]



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos"
[Carlos Drummond de Andrade]


Uma palavra, muitas vezes, é tudo o que se quer ouvir. Na verdade, é apenas o que se quer escutar. Apenas uma palavra, sim: uma palavra. Aquela palavra não dita. Aquilo que o próprio silêncio se encarrega de contar, quando o óbvio é mesmo óbvio e o indizível toma conta de todo o ser. A não-palavra. E, quando se deve calar, surge aquela palavra. Quando se quer calar: uma palavra. Quando não se deve calar, nenhuma palavra. Apenas uma palavra para se fazer feliz, para enaltecer. Também há aquela palavra que faz entristecer e, dela, melhor nada ser dito. Quero que digam-me palavras belas em doses homeopáticas sempre pelas manhãs para que, ao acordar, sinta-me amado e também ao final do dia para que, ao dormir, sinta-me reconfortado.

Quanto tempo dura o silêncio? Não me venham com a palavra escrita cheia de normalismos ou formalismos, porque eu quero mesmo é a palavraverdade, a palavrassorte e a palavramor. Todas assim, ditas como se tudo fosse tudojunto, sem pontuação, sem som, sem ordem, sem melodia. Quero essa palavratrêmula a vibrar as cordas vocais do narrador e reverberar meus tímpanos. Bum... bum... um... um... hum... hum... m... m... Retumbantes sons reverberando na caixa craniana a banhar-me se sensações orgásmicas: o neologismo. Surpreenda-me com a palavrainexistente, a não-grafia, como um soco a penetrar-me perante o desconhecido. Como uma palavraenormeamepenetrar e me entalar com que ouvi e não consegui decifrar. Como um vômito da palavrassincera. Neologismos necessários. Surpreenda-me: ashs gasm razm fazmem dzárguem. Oh sim, como lhe escuto. Não ouso compreender, mas prometo escutar-lhe. E quando eu digo lhe escuto é porque soa melhor que o te escuto, que parece afastar-nos. Juro guardar o seu sibilar sonoro sincero em suaves e solitárias emoções a surpreenderem-me em um único nós. Porque assim não estaremos sós, com a palavrajunto. E não ouse pronunciar a palavrerrada para que tudo se finde.

E não me canso de inventar a palavrencantada: contarei ûma istória a algúmas crianssas que não saybam ex-crever. Num reino tão-u diztante e muinto longe daqui vivia umafada. Umafadamuinto linda que çonhava encontrar um príncipe emcantado para cazar e... Eu poderia fazê-las muito felizes. Porque não se é feliz: está-se. Está-se feliz. E se for apenas uma história oral, elas nunca saberão que meus rabiscos que a fizeram felizes por instantes carregam palavras que, em si, em sua carne, não se sustentam na ortografia. Porque aqui, permito-me. Porque aqui permito-me ser-e-escrever comoquizer umacertesa: serei lido e, melhor, compreendido. De que me vale a forma? De que vale a padronização para se viver se mesmo sem pontuação e sem métrica e sem rima e sem respiração com a repetição dos dias é que vivemos e repetimos e repetimos e repetimos e se vive e se entende e ainda assim sem fôlego toma-se fôlego e entende-se o que deve ser entendido porque a maldita forma da palavra dita essa palavra mal dita ou melhor essa palavra maldita pode arrancar lágrimas e sangue e silêncio e solidão e esse corre-corre dos nossos dias que nos faz deixar de pensar o que fizemos hoje e ontem e anteontem e trasanteontem e na semana passada e no mês passado e sabemos apenas que houve Natal e Dia das Crianças e Dia dos Pais e São João e Dia das Mães e Páscoa e Carnaval e Natal e Dia das Crianças e começamos e recomeçamos e terminamos e ciclotizamos e cansamo-nos e dormimos e sempre cansamos e cansamos e cansamos e enjoamos e dormimos. Ufa! Mas a verdade é que cansamos. E cansamos de nossas vidas. Ah, como cansamos. E aqueles que acham que não estão cansados, ai desses... Tsc tsc tsc... É preciso ouvi-los com a alma, pois eis que não sabem dizer a verdade ou, pior, não a ousam. Porque a verdade dói e é cruel: crudelíssima.

Em sua essência a palavravida é que nos move. A palavramor é que nos reconforta. A palavradistração é que nos faz felizes. A palavrarrespeito nos torna humanos e a palavrahumilhação, a tragédia de nossas vidas. E ainda assim rezam. E como rezam para que, como num ato de desespero, como uma última esperança (pois é ela – e apenas ela – que resta) sejam ouvidos. E assim a palavrarreza nasceu não se sabe quando, nem onde, em ladainhas desde os primórdios. Sabe-se apenas por quê. Talvez porque sejamos incompletos ou, pior, queiramos estar incompletos. E isso basta. Porque deixamos a palavrassilêncio fluir e, em sua seiva, ela carregará a palavrassom e nos carregará, em matéria de carne e osso para o sepulcro na palavrador. Mas não nos deixar cair em tentação e livrai-nos de todo o mal.