quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Ensaio: Nós Não Somos... Quem Somos: Somos Aquilo Que Fizeram de Nós

 
NÓS NÃO SOMOS... QUEM SOMOS: SOMOS AQUILO QUE FIZERAM DE NÓS
[Mateus Almeida Cunha]



Somos temporalidade e culturalidade. Somos o que somos ou, melhor, quem somos, por questões temporais e culturais. Aos poucos, tornamo-nos seres. A realidade que temos (ou cremos) não foi por nós construída, mas nos foram atribuídas, muitas vezes sem questionamentos. E, a ausência de questionamentos, transforma-as em dogmas. Não há questionamentos para essas verdades. Mas por que não as temos? Por que não as criamos? Aceitamos, por medo de parecermos estranhos num grupo sociocultural que nascemos. E o medo faz parte do nosso instinto ancestral de sobrevivência. Porque sem os medos, degradaríamos (e destruiríamos) a nossa própria vida. Poderíamos subir sem o medo da queda ou poderíamos nadar até exaurirem-se nossas forças até o afogamento eminente.

Somos temporalidade porque se nascêssemos em outra época não seríamos quem somos. E somos culturalidade porque somos quem somos graças ao que nos é transmitido. Portanto, somos instante e cultura. Se tivéssemos nascido há alguns bons anos, seríamos especialistas em datilografia e não teríamos nenhum tipo de conhecimento em informática, já que esta não era de domínio popular. E se, ao contrário, nascêssemos daqui a muitos anos poderemos ter (ou desenvolver) habilidades que não temos (ainda) e talvez não consigamos nem supor tê-las. O fato de não termos nascido homens fortes na Roma Antiga deixou-nos o (anti-)legado de não sermos gladiadores, bárbaros e, por algumas vezes, primitivos. E se os fôssemos, poderíamos ser fortemente exaltados, reconhecidos e dignificados pelo fato de sabermos matar. E, nessa mesma Roma, a presença de uma deficiência física seria responsável por sermos assassinados ainda crianças, lançados de penhascos por não podermos servir ao seu Exército, tamanha era a sua crueldade com os que não lhe serviriam. Porque poderíamos fazer orgias sexuais com naturalidade que, muitas vezes, hoje, ainda são vistas com maus-olhos porque isso ainda não é aceito explicitamente. Seríamos politeístas, faríamos oferendas. Seríamos tão diferentes...

Ao longo dos anos tornamo-nos hipócritas. Porque somos politicamente polidos a chamar as putas, de profissionais de sexo, ainda que o nosso pensamento primário venha a ter a palavra pu-ta. Sim, putas. Que mal há em dizer algo exatamente da forma em que pensamos a forma da palavra? Porque somos forçados (obrigatoriamente e necessariamente) a padronizarmos nosso vocábulo, torná-lo culto, entendível e politicamente correto. Não chamamos mais os pretos de cor de pele, de pretos, mas ascendemos uma cor a uma cultura e os chamamos de afrodescendentes. E não nos esqueçamos que somos pretos e brancos e vermelhos e amarelos. Prefiro dizer que somos seres, apenas, porque não há mais raças. Há seres, apenas, e isso basta.

Torna-se muito claro, portanto, a fragilidade na qual estamos submetidos quando da nossa fase de entendimento de mundo e autoentendimento. Qual a nossa autenticidade? Quanto do nosso pensamento é, de fato, nosso, e quanto dele foi-nos transmitido e moldado? Porque engolimos as convenções sociais, as leis, os mitos, os dogmas, o conceito de ética. Mas, muitas vezes, apesar de engolirmos tudo isso, não digerimos. Entalamos, vomitamos e temos novamente de engolir. Essa é a vida tal como ela é. Basta abrir os olhos. Mas, cuidado, não os abras demais, pois podes cegar-se. Mascaram-nos e mascaramo-nos. No fundo, somos fruto do que querem que sejamos.

Nós não somos, portanto, quem somos, porque somos aquilo que fizeram de nós. O que nos passaram, moldaram, cuspiram, ensinaram, reiteraram, confirmaram, negaram, confundiram, sacanearam, dignificaram e, por fim, o óbvio: o que querem, de fato, que sejamos. Somos esses outros serem cobertos de máscaras sociais multifacetadas para o escritório, as férias, a família, os amigos, o seu íntimo, que nos querem. O nosso próprio íntimo. O que nos faz fortes e nos decepciona. O que nos empalidece. O que nos fortifica. O que nos dignifica? Um brinquedo a ser doado no Natal? Um pacote de arroz a ser doado numa campanha beneficente às vítimas de enchente? Um colchão velho e que nos é inútil a um desabrigado? Fazer uma apresentação de coral num asilo no dia do idoso? Comprar flores e dar às mulheres no seu dia? Encher nossos infantes de doces e brinquedos eletroeletrônicos no Dia das Crianças? O que nos faz felizes? O que é felicidade? O que é ser feliz? Ser feliz é estar. Estar? Sim. Estar. Estar bem, sentir-se bem, fazer-se bem e fazer o bem. Isso pode ser um passo para a felicidade. Mas não nos esqueçamos do autoconhecimento. Do saber o que se gosta, o que se é e o que se quer. Isso esbarra profundamente no que querem que gostemos, que querem que sejamos e que achem que queremos.

Tiremos, então, as máscaras e mostremo-nos quem somos. Mas, cuidado, a máscara pode estar a tanto tempo fixada-lhe à face que não seja mais possível arrancá-la. Ou, se arrancá-la, pode ficar com marcas profundas, causados por si mesmo. Pelo que gostaria de ser, e não o é, ou, pior, pelo que queriam que fôssemos. Fernando Pessoa escreveu, certa vez: “Fiz de mim o que não soube, e o que podia fazer de mim não o fiz”. Façamos, então, o que podemos fazer para nos mostrar. Mostremo-nos. arranquemos as máscaras e saiamos do palco. Corta!